quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Miss Lonelyhearts

"Um homem é contratado para dar conselhos aos leitores de um jornal. O emprego é um atraso de vida, e o jornal inteiro o considera uma piada. Ele aceita o emprego porque poderia levar a uma coluna de fofocas e, de qualquer modo, está cansado de ser repórter. Também considera o emprego uma piada mas, depois de vários meses, a piada começa a perder graça . Percebe que a maioria das cartas são súplicas profundamente humildes...expressões de um sofrimento genuíno. Descobre também que seus correspondentes o levam a sério. Pela primeira vez na vida, é obrigado a examinar os valores que governam a sua vida. Esse exame lhe mostra que é vítima da piada, e não seu prepetrador. "

Extraídas do texto, estas palavras resumem a situação de Miss Lonelyhearts, o correspondente sentimental e religioso de um jornal de Nova York. A Srta. Corações Solitários, anjo caído da moderna ficção americana, navega num oceano de dramas pessoais que as vezes beiram o absurdo e , absurdamente, só tem sentido quando olhados pela ótica de um humor lascivo e desconcertante., repleto de símbolos religiosos. Lembro quando o velho/sábio Mário Quintana, cansado das placas e outdoors que infestam de desejos e sonhos de consumo nosso dia-a-dia, fulminou: Então decidimos olhar para os céus, mas os céus anunciam a glória do senhor ! Disse tudo .Olhai por nós, Miss Lonelyhearts ! Leia nossas cartas repletas de dramas e solidão e porfavor não nos deixe sós, ou então ao menos pranteie por nós antes de ir ao bar tomar um drinque com sua velha turma.

"Subitamente cansado, sentou-se num banco. Se ao menos pudesse atirar a pedra....Olhou para o céu em busca de um alvo. Mas o céu cinzento parecia ter sido apagado com uma borracha suja. Não apresentava nenhum anjo, cruzes flamejantes, pombas com ramos de oliva, rodas dentro de rodas. Apenas um jornal se debatia no ar como uma pipa com a vareta quebrada. Levantou-se e rumou de novo para o bar".
Nathanael West,1903-1940. Miss Lonelyhearts-Imago,1994

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Joyce Para Todos

" Umas batidas leves na vidraça fizeram-no virar-se em direção à janela. Recomeçava a nevar . Sonolento, ele observou os flocos prateados e escuros, caindo obliquamente contra a luz do lampião. Chegara o momento de iniciar sua viagem para o oeste.É, os jornais tinham acertado: nevava em toda a Irlanda. Caía neve por toda a sombria planície central, nas montanhas desprovidas de árvores, nevava com brandura sobre o Blog of Allen e, mais para o oeste, nevava delicadamente sobre as ondas escuras e rebeldes de Shannon. Caía também no cemitério solitário da colina onde jazia Michael Furey. Acumulava sobre as cruzes inclinadas e sobre as lápides, sobre as pontas das grades do portão, sobre os espinhos. Sua alma desfalecia-se lentamente enquanto ele ouvia a neve precipitando-se placidamente no universo, placidamente precipitando-se, descendo como a hora final sobre todos os vivos e todos os mortos ".

James Joyce, Dublinenses/ Os Mortos.

O parágrafo final deste Conto de Joyce é fantástico, um dos grandes momentos da literatura do século XX( a meu ver, é claro).É poético e manso como a morte, lembra a saudade de um lugar onde nunca fomos...é possível sim ouvir o discreto ruído da neve caindo, silenciosamente, placidamente, sobre todos os vivos e os mortos. A filmagem de John Huston para este conto também é magistral ( acho que Angelica Huston, a filha, está presente ).

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Poesia a golpes de martelo/ Não esqueçam o velho Enzensberger

Rondó

Falar é fácil.

Mas, não se comem palavras.
Portanto, faze pão.
Fazer pão é difícil.
Portanto, torna-te padeiro.

Mas, num pão não se mora.
Portanto, constrói casas.
Construir casas é difícil.
Portanto, torna-te pedreiro.

Porém, em cima de uma montanha não se constroem casas.
Portanto,transporta a montanha.
Transportar montanhas é difícil.
portanto, torna-te profeta.

Porém, os pensamentos não se ouvem.
Portanto, fala.
Falar é difícil.
Portanto, torna-te o que és

E segue murmurando, só para ti,
criatura inútil.

Eu falo dos que não falam /Hans Magnus Enzensberger/ Ed. Brasiliense, 1985.